No antigo Egito, os imperadores eram tratados como deuses. Seus principais assessores tinham o papel de filtrar todo e qualquer risco.
Havia aqueles que provavam a comida para evitar situações potenciais de envenenamento.
Outros organizavam a agenda dos imperadores fazendo com que nada de ruim ou desconfortável pudesse estragar o dia dos grandes líderes.
O cenário atual vivido por gerentes e diretores com seus presidentes ou CEOs, em alguma medida, não se distancia muito da era egípcia.
O medo de expor a realidade como efetivamente é norteia grandes corporações, criando um exército de aduladores e contadores de histórias maquiadas.
Num contexto em que impera o mantra do chefe que diz “não me traga problemas”, ninguém se arrisca a fazer o papel do mensageiro das más notícias.
Nesse jogo de esconde-esconde, surge um problema ainda mais sério.
Ora, como resolver os problemas se você não os conhece? Mais: como capturar novas oportunidades se não tem contato com a realidade?
Mensagens filtradas
Na atividade de consultoria esse tipo de situação é bastante comum.
Nós nos deparamos com gerentes de inovação e de outras unidades de negócio tentando filtrar a mensagem que chega aos principais executivos o tempo inteiro.
Pedem-nos que suavizemos a frustração de seus clientes ou as ameaças tecnológicas.
Há casos em que os executivos de média e até de alta gestão querem saber de antemão não apenas o conteúdo, mas também a forma com que a comunicação com o principal executivo se dará.
Como se ele fosse um imperador do antigo Egito, que não pudesse encarar nenhuma surpresa.
No ambiente atual de disrupção, filtrar a realidade é um dos piores erros que um gestor pode cometer.
Transformação digital
Vivenciei recentemente um caso em uma cliente – que vou chamar de Juliana para evitar constrangimento.
A Juliana liderava uma área de digital e inovação de uma grande indústria de bens de consumo.
Ela havia desenvolvido sua carreira em empresas de primeira linha.
Fora educada, mesmo que inconscientemente, a poupar o CEO sempre que possível.
Juliana sabia dos desafios e oportunidades que a transformação digital trazia para a empresa.
Tinha várias ideias de como renovar o negócio existente.
Mas, a cada oportunidade demostrar a realidade ao CEO, ao invés de ser franca, direta e elucidativa, preferia contornar a situação e “dourar a pílula” para dar ao chefe a falsa sensação de previsibilidade e ter uma segurança na sua carreira.
Vale do Silício
Numa dessas missões ao Vale do Silício, que virou uma espécie de Disney dos executivos brasileiros, o presidente da Juliana voltou encantado com todas as mudanças tecnológicas e de gestão em andamento.
A inspiração provocada por esse tipo de experiência pode ser tão intensa quanto a visita ao Castelo da Bela Adormecida.
Foi, então, que o chefe da Juliana percebeu que quem estava adormecido era ele. E, provavelmente, a tal Juliana.
Afinal de contas, ela passou os últimos três anos sem desafiar nenhuma de suas velhas convicções.
Não havia proposto novas iniciativas, nem sequer apresentado a ele esse novo mundo e a chamada nova economia.
Na volta ao Brasil, num domingo chuvoso, o presidente da companhia marcou uma reunião para o dia seguinte com toda a diretoria.
Estava com o plano pronto, desenhado nas horas de insônia daquele longo voo.
Na segunda-feira todos souberam que a empresa teria, a partir daquele dia, uma nova área de Inovação e Digital, que reportaria diretamente à presidência, responsável pelas iniciativas realmente transformadoras.
Sem prestígio, Juliana perdeu a oportunidade de tocar a nova área.
Aos olhos dele, a profissional não era mais vista como alguém com capacidade, repertório e competências para a empreitada.
Plano na gaveta
A história acima não é um caso isolado, faz parte do novo anedotário corporativo.
Bons profissionais limitando a si próprios pela cultura da organização ou seu receio de tomar riscos.
A transformação da empresa da Juliana ainda está em curso. Mas ela não está mais lá. Perdeu seu emprego.
O novo Chief Digital Officer (CDO) optou porformar um novo time.
A Juliana sequer teve a oportunidade de dizer que tinha tudo isso num plano. Todo escrito, porém guardado na gaveta.
Faltou-lhe coragem para retratar o mundo sem filtros. Por receio de perder o emprego ao dizer a verdade, acabou tomando o maior de todos os riscos.
O risco de não tomar nenhum risco.
- Maximiliano Carlomagno é sócio da Innoscience