Como Twin Peaks revoluciona a televisão mais uma vez

A nova temporada de Twin Peaks deve ajudar a CBS a aumentar de 3 milhões para 4 milhões os assinantes de seus serviços de streaming / Reprodução
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A nova temporada de Twin Peaks deve ajudar a CBS a aumentar de 3 milhões para 4 milhões os assinantes de seus serviços de streaming / Reprodução
Twin Peaks deve ajudar a CBS a aumentar de 3 milhões para 4 milhões os assinantes de seus serviços de streaming / Reprodução

(Caso você não tenha assistido à série e queira evitar spoilers, é melhor não ler o texto abaixo.)
No começo do 17.º episódio de Twin Peaks: o retorno, o agente Albert Rosenfield diz a Gordon Cole, vice-diretor do FBI interpretado por David Lynch, diretor e cocriador da série: “Você amoleceu com o tempo”.
Ao que Cole responde: “Não onde importa, amigo”.
A volta de Twin Peaks é uma prova de que essa frase se aplica ao próprio Lynch. Aos 71 anos, o cineasta conseguiu mais uma vez ampliar os limites do que entendemos por televisão.
Enquanto a série original foi um sucesso de público, pelo menos na primeira temporada, com O retorno aconteceu algo curioso.
A estreia da série teve pouco mais de 500 mil espectadores no canal Showtime, bem distantes dos 34 milhões conseguidos no início da transmissão da primeira temporada, em 1990.
A audiência no serviço de streaming do Showtime, no entanto, foi recorde. Em média, Twin Peaks conseguiu atrair 1,1 milhão de pessoas, contando com as transmissões via internet.
A CBS, dona do Showtime, espera fechar o ano com 4 milhões de assinantes nos serviços de streaming CBS All Access e Showtime. Em fevereiro, antes da estreia de Twin Peaks, eram 3 milhões.
A série deve responder por boa parte do crescimento. (No Brasil, está disponível na Netflix.)

Era de ouro da televisão

Twin Peaks é apontada por muitos como precursora da chamada era de ouro, marcada por séries como Sopranos, Mad Men e Breaking Bad.
A série criada por David Lynch e Mark Frost subverteu gêneros e mostrou que o grande público estava preparado para personagens complexos e narrativas não lineares.
Apesar de o grande mistério ser “quem matou Laura Palmer”, para os autores responder a essa questão era o menos importante. Lynch chegou até a pensar em nunca revelar o assassino da adolescente, mas acabou cedendo a pressões da emissora.
David Chase, criador dos Sopranos, disse à Vulture considerar O retorno ainda melhor que as temporadas originais de Twin Peaks.
A temporada mais recente de 18 episódios, que terminou no último dia 3, faz muitas vezes o espectador se perguntar: “O que é isso que eu acabei de ver?”
E essa sensação vai desde o famoso episódio 8, em que Lynch mostra como um ser de pura maldade surgiu de um teste de bomba nuclear, até detalhes como uma cena em que um cara varre o chão de um bar por dois minutos e meio.

Muitos memes

O novo Twin Peaks é um dos seriados mais meméticos da história da TV. Pelo menos uma cena em cada episódio parece ter sido pensada para dar origem a memes.
Uma das melhores é quando o agente especial Dale Cooper (Kyle MacLachlan) volta de sua prisão extradimensional no Black Lodge para o nosso mundo e começa a ganhar seguidamente nos caça-niqueis de um cassino.

Antes de cada vitória, ele diz: “Hello-ooo-ooo!”
Cooper, o protagonista de Twin Peaks, passa a maior parte da nova temporada como Dougie Jones, em estado catatônico, repetindo as frases que as pessoas lhe dizem como o personagem Barbosa, da antiga TV Pirata.
Em outro momento, Matthew Lillard, o Salsicha dos filmes do Scooby-Doo, interpreta William Hastings, que está preso sob a acusação de ter assassinado a amante.
“Nós íamos para as Bahamas”, afirma Hastings, num momento de muita emoção. “Íamos mergulhar (scuba dive) e beber drinques coloridos na praia! (…) Quero ir mergulhar (scuba diving)!”
O problema é que, quando ele diz “scuba dive” ou “scuba diving”, dá a impressão de que vai falar “Scooby-Doo”.
Matthew Lillard e o meme do Scooby-Doo / Reprodução
Mas a melhor piada está relacionada a James Hurley, um dos personagens mais odiados pelos fãs de Twin Peaks.
Num episódio antigo, o motoqueiro canta “Just You and I”, canção composta por Lynch e Angelo Badalamenti, autor da trilha sonora. Ele é acompanhado por Donna e Maddy, melhor amiga e prima de Laura Palmer, respectivamente.
Durante a última temporada, os fãs começaram a brincar que James cantaria essa música no Roadhouse. Apresentaram-se no palco do bar de Twin Peaks nomes como Nine Inch Nails e Sharon Van Etten.
A piada tornou-se realidade no episódio 13.

David Lynch é um grande troll.

Senilidade

Dale Cooper passa a maior parte do tempo como Dougie Jones, sem ter consciência de quem é, repetindo o que os outros dizem a ele.
Na minha opinião, o tema principal da temporada mais recente de Twin Peaks é a senilidade. Como o tempo pode tornar enfraquecer a consciência das pessoas a ponto de elas não saberem onde estão ou quem elas são.
De certa forma, isso se reflete no polêmico episódio final, em que Dale Cooper, por meio de viagens no tempo e entre dimensões, consegue evitar a morte de Laura Palmer (Sheryl Lee). (Pelo menos, é uma interpretação possível.)
Tem gente que achou abertos demais os finais de Mad Men ou de Sopranos, mas nada se compara ao final de Twin Peaks: o retorno.
Nem mesmo o final da segunda temporada, há 27 anos, em que uma versão maligna do agente especial Dale Cooper (Kyle MacLachlan) bate a cabeça contra um espelho e pergunta: “Como está Annie?”
Existe um sentimento de perda que perpassa todo a temporada. Miguel Ferrer, que interpreta o agente Albert, morreu logo depois de gravar sua participação, antes de os episódios serem exibidos.
Catherine Coulson, que interpreta Margaret Lanterman, a mulher do tronco, e enfrentava um câncer, também morreu antes da estreia da temporada.
Phillip Jeffries, agente do FBI vivido por David Bowie no longa-metragem Fire Walk With Me, aparece transfigurado numa chaleira gigante.
Os fãs tinham esperança de que Bowie tivesse conseguido gravar uma participação antes de morrer no começo do ano passado. Mas isso não aconteceu.
O próprio Bob, principal vilão de Twin Peaks, aparece em imagens de arquivo, já que Frank Silva, que o interpretava, morreu em 1995.
Mas, como mostrou a homenagem a Catherine Coulson no episódio 15, a morte pode ser tranquila, apesar de triste.

Passado ou futuro

O problema é quando a consciência começa a se esvair antes. Mike, o homem de um braço só, pergunta a Cooper no espaço extradimensional conhecido como Sala Vermelha: “Isto é o futuro ou isto é o passado?”
A pergunta é pertinente não só no contexto da história, mas também para quem assiste a ela. Existem várias indicações de que a temporada não foi montada em ordem estritamente cronológica.
Às vezes vemos alguém receber uma mensagem de texto no celular e a outra pessoa enviar a mensagem numa cena posterior.
O último episódio mostra Cooper confuso. Ele está em outra dimensão e é chamado de Richard, num bilhete. Encontra Laura Palmer, mas ela não se reconhece como tal, dando o nome de Carrie Page.
Então Cooper/Richard leva Laura/Carrie para a casa dela na cidade Twin Peaks. Eles batem à porta, uma mulher atende e fala que os Palmers nunca viveram lá. Cooper pergunta: “Que ano é este?”
Uma maneira de interpretar o final é que, tirando toda a camada de seres extradimensionais e viagens no tempo, a essência de Twin Peaks é a história de uma vítima de violência.
Laura Palmer é uma adolescente que viveu uma vida de abusos em casa, passou a se drogar para tentar esquecer e acabou sendo assassinada pelo próprio pai. Não existe como voltar no tempo e desfazer o que já foi feito.
Teve gente que escreveu que Twin Peaks: o retorno é ótimo para fechar a carreira de David Lynch.  De certa forma, a série é uma síntese de tudo o que ele fez até hoje, de Eraserhead a Inland Empire.
Mas eu espero que, apesar de toda a preocupação com os efeitos da passagem do tempo, ele ainda consiga produzir mais.


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