2025 tem se mostrado implacável. Mal começou e recebemos a notícia da morte de David Lynch.
Se você nasceu em algum momento da década de 1970 e começou a acompanhar os filmes, quando fecha os olhos provavelmente ainda vê alguma cena de Veludo Azul.
As formigas na orelha cortada no jardim; Kyle MacLachlan mostrando para Laura Dern como a galinha anda; o pedaço de veludo azul tirado do roupão; a luz que entra pelas frestas do armário; Dennis Hopper chamando mamãe por trás da máscara facial; Dean Stockwell com sua performance de “In Dreams”; o momento em que Isabella Rosselini diz: “Eu tenho sua doença em mim”.
Lynch foi chamado de surrealista, e algumas vezes o que ele fazia tinha a ver com o encontro casual do guarda-chuva com a máquina de costura sobre a mesa de dissecação, mas seus filmes (e sua TV) faziam todo o sentido, principalmente do ponto de vista estético. Os azuis e os vermelhos em Veludo Azul. Os verdes e os marrons em Twin Peaks. Tudo no seu devido lugar. Nada poderia ser diferente.
Lembro que, depois de Veludo Azul, vi Eraserhead num cinema na Augusta, no começo da década de 1990 . Era uma cópia em VHS, numa televisão. A Giulia Gam também estava nessa sessão, mas saiu no meio. Não tenho certeza se a memória é verdadeira. De qualquer forma, é bastante nítida.
In Heaven (Everything Is Fine)
Frank Black, líder dos Pixies, disse numa entrevista que tinha achado genial tocar “In Heaven”, de Eraserhead, nos shows, para depois perceber que centenas de bandas fazem isso.
Difícil medir o impacto cultural de Lynch. Eu vi o brilho da TV, um dos melhores filmes de 2024, é exemplo de como pode inspirar gerações de novos artistas.
A indústria do cinema não foi muito generosa com ele.
Sua versão de Duna foi mutilada (e temos de nos contentar com os filmes lindos, grandiosos e chatos de Denis Villeneuve). Em Twin Peaks, obrigaram-no a revelar quem matou Laura Palmer, além de a terceira temporada demorar 25 anos para sair do papel. E é famosa a imagem de David Lynch sentado ao lado de uma vaca para promover a indicação de Laura Dern ao Oscar por Império dos Sonhos (não, não recebeu a indicação).
David Lynch promoveu a meditação transcedental, até criou uma fundação para isso. Ele comparava a criação artística com a pesca em águas profundas, como se as ideias já existissem num lugar difícil de alcançar, e a meditação fosse a maneira de chegar lá.
Artista completo, começou nas artes plásticas, virou cineasta, ator, músico, quadrinhista, escritor e até YouTuber. No documentário David Lynch: a vida de um artista, conta que, quando estudava arte, tinha vários animais mortos no porão. Ele planejava usá-los em suas obras. Seu pai foi visitá-lo e, depois de ver aquilo, disse: “David, nunca tenha filhos”.
Mas ele teve quatro filhos, incluindo a Jennifer Lynch, que dirigiu Encaixotando Helena e escreveu O diário secreto da Laura Palmer.
Que ano é este?
Em 2024, Lynch anunciou que tinha enfisema pulmonar e que não conseguiria mais dirigir cinema. Como acontece em momentos como esse, nós, fãs, ficamos mais preocupados com a produção do que com a saúde do artista.
Já imaginou um mundo sem novos filmes do David Lynch? Tivemos uns meses para pensar nisso, mas nunca tempo suficiente para nos acostumarmos com a ideia.
E nesta quinta-feira, 16 de janeiro de 2025, veio a notícia de que o temor se tornou real, e então nossa realidade perdeu um pouco de sentido. Como perguntou o agente Cooper na terceira temporada de Twin Peaks: “Que ano é este?”
