‘O que aprendi lançando um aplicativo francês no Brasil’

Vários céticos diziam que a BlaBlaCar nunca ia dar certo no Brasil / Ana Perugini/Flickr
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Vários céticos diziam que a BlaBlaCar nunca ia dar certo no Brasil / Ana Perugini/Flickr
Vários céticos diziam que a BlaBlaCar nunca ia dar certo no Brasil / Ana Perugini/Creative Commons

À frente da operação brasileira de uma grande plataforma francesa de caronas intermunicipais, muito tenho aprendido sobre o mundo do empreendedorismo.
E também sobre o transporte rodoviário no Brasil, o impacto real da cultura do compartilhamento e os desafios da gestão local em um ambiente global.
Implementar localmente o app de uma empresa que, lá fora, já contava com mais de 50 milhões de usuários em mais de 20 países antes de aterrissar no Brasil não foi tarefa fácil.
Mas cá estamos, após dois anos e meio, muitos erros, acertos e mais de 2 milhões de usuários, para contar essa história.
Sem nenhuma intenção de ser “completo” ou escrever qualquer tipo de guia, compartilho algumas reflexões pessoais sobre essa trajetória.

Carona no Brasil: sim, dá certo!

Ricardo Leite, da BlaBlaCar / Divulgação
Ricardo Leite, da BlaBlaCar / Divulgação

Assim como aconteceu com outras plataformas de economia compartilhada, antes do lançamento oficial da BlaBlaCar por aqui, vários céticos me diziam que o negócio nunca ia dar certo no Brasil.
Talvez fosse a velha síndrome de vira-lata tentando nos boicotar.
Após dois anos e meio da plataforma no país, já são mais de 2 milhões de brasileiros em nossa comunidade. Há alguns fatores-chave para esse sucesso:
A França cabe na Bahia. É o que costumo dizer aos meus colegas franceses, carinhosamente.
Com dimensões continentais, uma frota de 53 milhões de automóveis, uma infinidade de destinos turísticos, muitos feriados, uma população sociável e boa penetração de smartphones, o mercado brasileiro é crème de la crème.
Mais dinheiro no bolso e adeus às baldeações. O Brasil possui um dos custos mais altos para se comprar e manter um veículo.
A economia proporcionada pelas caronas ao condutor – de até 70% dos custos da viagem, dependendo do número de passageiros – viabiliza empregos (por exemplo: pessoas de Campinas que trabalham em São Paulo) e aproxima famílias (por exemplo: pais que moram longe dos filhos podem visitá-los mais).
O mesmo se aplica aos passageiros, que também economizam dinheiro e tempo ao viajar diretamente entre cidades não conectadas diretamente por linhas de ônibus tradicionais: São José dos Campos/SP e Ribeirão Preto/SP são um dos 20 mil pares de cidades conectados diretamente somente via automóvel.
44% dos brasileiros nunca fizeram turismo. E certamente esse número está subestimado, visto que 50% da população não tem acesso à rede de esgoto.
Considerando que a França, onde a BlaBlaCar funciona há mais de dez anos, cabe na Bahia, fica claro que estamos no início da nossa história no Brasil.
Minha visão para os próximos dez anos é democratizar as viagens no país, permitindo que uma parcela muito maior da população tenha acesso (ou mais acesso) ao fim de semana na praia, ao curso na cidade próxima e à comida da mamãe no interior.

Executivo ou empreendedor?

Costumo dizer que empreendedorismo não é sinônimo de fundar uma startup e sim um mindset. Ou seja, ser gestor local de uma startup global também é empreender; afinal, a BlaBlaCar ainda é uma organização em busca de um modelo de negócio escalável e repetível.
Dito isso, é inegável que não sinto a pressão da incerteza sobre, por exemplo, ter caixa para fechar a folha da empresa daqui a três meses, ver meu patrimônio pessoal (líquido) diminuir sem fim e ter meu estilo de vida comprometido.
Tenho boa parte dos benefícios de empreender sem correr muitos riscos.
Mas nem tudo são flores. Como toda startup ambiciosa, a BlaBlaCar costuma ver erros como parte natural do processo de inovação: se não cometermos erros, é sinal de que não estamos inovando rápido o suficiente.
Ainda assim, existe a pressão por resultados, talvez até maior em relação àquela exercida pelo conselho de uma startup nascente (as coisas mudam rápido de figura à medida que a startup escala).
Tudo isso em meio a um cenário de autonomia relativa sobre alocação de recursos globais (mais detalhes abaixo).

Sendo gestor local de uma startup global

A negociação pela alocação dos recursos globais é constante. A física clássica afirma que um objeto não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.
O mesmo se aplica a recursos de capital ou humanos: se alguém está desenvolvendo uma funcionalidade para o app do Brasil, não trabalha numa funcionalidade para a Alemanha (ou França, ou Rússia).
A fim de maximizar os resultados locais sem esquecer dos globais, parte do meu trabalho é negociar a alocação desses recursos, o que naturalmente gera frustração – mas também satisfação.
Nada supera as conversas cara-a-cara. Mesmo em uma empresa que já nasceu digital – em que as decisões são tomadas racionalmente, com base em dados – e que dispõe das melhores ferramentas de comunicação por vídeo, nada supera o bom e velho papo no corredor e o cafezinho.
Nesses meus quase três anos de BlaBlaCar, foram vários os bugs resolvidos após encontros ao acaso (ou planejados) com gerentes de produto em Paris.
Não existe receita de bolo. Um clichê nunca fez tanto sentido para mim. Pela matriz, sabemos que temos que usar leite, ovo e farinha, mas o “toque Palmirinha” é nosso – ou então não faria sentido manter um time local.
Precisamos localizar o produto, seja investindo em servidores locais para diminuir latência, implementar funcionalidades para confirmar a documentação dos usuários ou criar uma estratégia de marketing que reflita a diversidade do brasileiro.
Adicionalmente, como parte de uma empresa global e colaborativa, vemos que inovação ocorre em todas as direções de maneira multilateral, entre matriz e países.
Já tivemos ajuda da Alemanha e Ucrânia com parcerias e comunicação, assim como ajudamos Espanha e Rússia com mídias sociais.
É desafiador não ter receita de bolo, mas o fato é que isso incentiva a criatividade, essencial para qualquer chefe de cozinha de sucesso.
Continuo essa jornada com a certeza de que lançar uma startup localmente é bastante desafiador, certamente com desafios diferentes de criar uma empresa do zero.
Apesar das dificuldades, a recompensa é diária e se renova cada vez que vejo uma nova viagem de carona sendo realizada com a ajuda do nosso aplicativo.

  • Ricardo Leite é diretor da BlaBlaCar no Brasil

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