Como o uso de aplicativos afeta o cérebro

Nosso cérebro espelha o que somos e somos o que ele permite ser / Pedro Gabriel Ferreira/Creative Commons
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Nosso cérebro espelha o que somos e somos o que ele permite ser / Pedro Gabriel Ferreira/Creative Commons
Nosso cérebro espelha o que somos e somos o que ele permite ser / Pedro Gabriel Ferreira/Creative Commons

O contato com aplicativos e dispositivos é cada dia mais comum para todo tipo de gente, de todas as idades. Um contato intenso, que, muitas vezes, deixa as pessoas isoladas, absorvidas em casulos imaginários, de olhos fixos em telas de todos os tamanhos.
Não há lugar ou limite: pode ser na espera de uma consulta ou transporte, no almoço e no jantar, na sala de aula, logo depois de acordar, antes de dormir… Os olhos e os cérebros estão em contato com esses dispositivos.
Será que há algum prejuízo para o desenvolvimento escondido nessa interação com apps? Que efeitos esse contato intenso e cada vez mais prolongado pode ter em nossa capacidade cognitiva, na forma como pensamos, em nosso comportamento e personalidade? Poderia ser a causa de distúrbios de ansiedade, impaciência e estresse?
Muitas perguntas ainda em busca de respostas, mas uma coisa já sabemos: nossas estruturas mentais podem ser afetadas, de um modo ou de outro.

Processo de adaptação

Fernando Fonseca, da FTD Educação / Divulgação
Fernando Fonseca, da FTD Educação / Divulgação

Muitos imaginam o cérebro como uma estrutura homogênea, composta pela massa encefálica que cresce e se desenvolve nos primeiros anos de vida e depois se estabiliza de forma imutável.
A percepção intrapsíquica de que somos a mesma pessoa ao longo de toda a vida colabora com essa ideia. Mas a realidade é bem diferente: o cérebro não é homogêneo, é composto por diversas subestruturas que se especializam em determinadas funções, e as pesquisas das neurociências nas últimas décadas têm revelado que está em permanente processo de adaptação às nossas necessidades. Talvez seja o órgão mais versátil de todos!
As experiências de vida, especialmente aquelas repetidas inúmeras vezes, acabam por promover alterações das estruturas e do funcionamento do cérebro. A memorização é um bom exemplo desse fenômeno.
Num dado momento fixamos um novo elemento em nossa memória e ele lá permanece por um longo tempo, às vezes em definitivo, à nossa disposição. Cada memorização é uma alteração do estado do cérebro.
Assim, o cérebro segue sua jornada de desenvolvimento de modo a nos dotar de conhecimento, habilidades e competências de que necessitamos para enfrentar a vida concreta, e isso resulta das alterações na estrutura e no funcionamento do cérebro.
Portanto, a menos que haja uma disfunção, as interações com o mundo alteram a estrutura e o funcionamento do cérebro, e não seria diferente no caso das interações com apps e com dispositivos técnicos.

Plasticidade do cérebro

As investigações das neurociências também revelaram que o cérebro é solidário: uma determinada área, além de ter uma intensidade maior ou menor em uma dada atividade, pode crescer ou diminuir e, também, pode substituir ou ajudar outra área a realizar outra função.
Quando uma pessoa deixa de falar após um acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo, é possível que algum tempo depois ela recupere a fala, no todo ou em parte.
Isso ocorre porque exercícios de fala forçam o cérebro a perceber essa necessidade e a se adaptar a ela, fazendo com que uma região não atingida assuma a tarefa.
Os neurocientistas chamam essa característica de plasticidade.
Mas não é necessário um acidente para que certas áreas sejam forçadas a trabalhar mais ou mesmo a crescer ou obter ajuda de outras áreas.
Se você é músico, as áreas do cérebro envolvidas com o processamento dos sons serão mais exigidas e terão maior atividade, com mais conexões entre os neurônios e mais sinapses, responsáveis pela troca de sinais elétricos trocados entre os neurônios quando o cérebro está trabalhando.
Se você não é músico, mas um artista plástico, como por exemplo, um pintor, outras áreas do cérebro serão mais ativas e desenvolvidas, como aquelas que lidam com o reconhecimento das cores. O mesmo acontece para cada tipo de atividade que realizamos.

Melhor trajeto

Não parece, mas todos esses fenômenos estão em ação quando utilizamos um aplicativo no smartphone ou tablet. Vamos considerar o Waze para entender como isso ocorre.
O Waze é utilizado para obter orientação em tempo real sobre o melhor trajeto a fazer no deslocamento entre dois pontos. Pode ser de uma cidade a outra, ou dentro de uma mesma cidade, não importa.
O Waze faz indicações com base em mapas, informações enviadas pelo seu smartphone, como as do GPS, e nas informações que obtém dos outros usuários, aqueles que trafegam próximos ao trajeto que você pretende fazer.
Em geral tudo funciona bem, basta dizer ao Waze aonde você quer ir e pronto, é só seguir as orientações: em duzentos metros, vire à direita; vire à direita; reportado acidente à frente; e assim por diante.
O Waze facilita nossa navegação espacial na complexa malha viária em meio ao tráfego. Como ele tem informações atualizadas sobre o trânsito, muitos se habituaram a utilizá-lo mesmo quando conhecem o caminho.
Como fazíamos antes do Waze existir? Se você não é de uma geração que já nasceu com o Waze, certamente se lembrará. Havia basicamente duas situações: quando um caminho era conhecido e quando não era.
No primeiro caso, reproduzíamos mentalmente o que devia ser feito. De algum modo nosso cérebro desenhava antecipadamente o caminho, utilizando as referências que conhecia e estavam em nossa memória.
Criávamos imagens mentais: planejávamos o que deveria ser feito, o que de alguma forma significava que visualizávamos internamente o caminho.
Antes da próxima rua, nosso cérebro já estava preparado para nos fazer virar e assim nos conduzia rua a rua, curva a curva, até o destino.

Competências espaciais

Esse processo mobilizava muitas habilidades e competências, mas o uso das competências espaciais e cinestésicas era mais intenso, tomando como referência a Teoria das Múltiplas Inteligências, de Howard Gardner.
A primeira nos ajuda a projetar espaços e a nos posicionar nele, e a segunda nos permite coordenar nossos movimentos nesse espaço. Todas as nossas referências para montar essas imagens estavam armazenadas em nossa memória de longo prazo.
No segundo caso, quando não conhecíamos o caminho e, portanto, não tínhamos referências na memória, restava perguntar ou consultar um guia impresso da cidade, cheio de mapas. O guia impresso substituía a memória.
Quando um mapa é utilizado, mobilizamos nossas inteligências linguísticas e matemática, mas continua muito forte a contribuição das inteligências espacial e cinestésica, agora de um modo parcialmente diferente de quando a referência vinha da memória.
Nesse caso, era necessária a realização de correlações entre o mapa e o caminho real, transposições, o que implica na capacidade de ler as representações bidimensionais dos mapas da cidade, sabendo alinhar corretamente sua orientação com o ponto da cidade em que estamos (onde fica o norte, o sul, o leste e o oeste, a direita e a esquerda etc).
Isso exigia, muitas vezes, girar o mapa para alinhar com nossas referências. Todo o trabalho ficava mais difícil do que quando utilizávamos apenas a memória e, com frequência, era necessário parar e reavaliar o mapa e o caminho.
Para alguns tudo isso era tão penoso que era preferível simplesmente perguntar, parando de vez em quando para se reorientar.
Como deve estar claro, algo tão simples como ir de um lugar para outro é uma operação mental complexa.
O Waze facilita nossa navegação espacial, uma função executada pelo hipocampo, uma pequena estrutura do cérebro, reduzindo praticamente tudo a seguir suas instruções orais: saber o que é esquerda e direita é quase tudo o que você vai precisar.
Quanto mais usamos o Waze para ir de um lugar a outro menos usamos o hipocampo.

E o que acontece então?

Nicholas Carr, em sua antológica obra A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros, descreve uma pesquisa realizada com taxistas de Londres no final dos anos 1990:
“[…] um grupo de pesquisadores britânicos escaneou os cérebros de taxistas que tinham entre dois e quarenta anos de experiência atrás do volante. Quando compararam os resultados com os de um grupo de controle [não taxistas], encontraram que a parte posterior do hipocampo dos taxistas, uma parte do cérebro que desempenha um papel-chave no armazenamento e manipulação de representações espaciais no entorno de uma pessoa, era muito maior que o normal. Além do mais, quanto mais tempo de trabalho tinha o taxista, maior tendia a ser seu hipocampo posterior. Os investigadores descobriram também que a parte anterior do hipocampo dos taxistas era menor que a média, o que pareceu uma consequência da necessidade de acomodar a ampliação da zona posterior. Provas posteriores indicaram que a diminuição do hipocampo anterior podia ter reduzido a capacidade dos taxistas para outras tarefas de memorização”.
Chegamos a um ponto em que já é possível compreender por que é provável que o uso continuado e sistemático do Waze pouco a pouco sinalize ao cérebro que certas estruturas não são mais tão necessárias, neste caso o hipocampo, e outras são ainda mais necessárias.
Talvez com o tempo de uso intenso fique mais difícil para seus usuários sistemáticos traçar caminhos mentalmente sem a ajuda do Waze.
Um pouco preocupante é o fato de que podem ficar comprometidas outras atividades relacionadas à navegação espacial, não apenas o traçar caminhos.
Precisamos considerar que o hipocampo não é estimulado apenas quando traçamos caminhos pela cidade e que essa atividade é, talvez, insuficiente para gerar alterações na grande maioria das pessoas.
Também precisa ficar claro que não estamos de modo algum querendo dizer: desliguem o Waze! Apaguem seus aplicativos! Abandonem as telas! Larguem as máquinas!
Seria impossível abrir mão das facilidades que hoje temos com o Waze e com tudo mais que a revolução científica e tecnológica tem nos trazido. Não propomos, não podemos e não queremos voltar atrás.
Mas é preciso ter consciência do que está em jogo com esses avanços e de certas mudanças de hábitos e práticas sociais que se disseminam em nossas vidas.

Processo educacional

Jogos, objetos educacionais, redes sociais, buscadores. Enfim, todos esses recursos que agora estão ao alcance da maioria podem potencializar alterações em nossa estrutura e funcionamento cerebral.
Como nosso cérebro não descansa e está sempre se ajustando às nossas experiências e necessidades, a um só tempo ele espelha o que somos e somos o que ele permite ser.
Por isso, é preciso que o processo educacional saiba compensar e balancear muito bem as atividades para que o desenvolvimento humano possa ser pleno e equilibrado, mesmo que mudanças de hábitos tragam importantes alterações.
Essas alterações não são necessariamente boas ou más, mas se mudam nosso jeito de fazer, mudam nosso jeito de ser. Lidar com isso na educação e pensar nesses processos ao desenvolvermos novas tecnologias é, nos termos atuais, um novo e estimulante desafio.

  • Fernando Fonseca é gerente de inovação e novos negócios da FTD Educação

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