No começo de setembro de 1859, uma grande tempestade solar, que ficou conhecida como Evento Carrington, causou falhas em sistemas de telégrafo nos Estados Unidos e na Europa.
Fitas de telégrafo pegaram fogo e torres soltaram faíscas. Alguns operadores tomaram choques, enquanto outros conseguiram transmitir e receber mensagens mesmo depois de a energia ter sido desligada.
Se acontecesse hoje, uma tempestade solar dessa magnitude poderia derrubar as redes de eletricidade e telecomunicações, significando, segundo o cineasta Werner Herzog, o “fim da civilização moderna”.
No documentário Eis os delírios do mundo conectado (Lo and behold, 2016), que está disponível na Netflix, Herzog trata do passado, do presente e do futuro da internet.
Aos 74 anos, o diretor alemão está longe de ser um entusiasta da tecnologia. No filme, sua ironia beira o sarcasmo.
Passado
O documentário começa na sala da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla) em que foi feita a primeira conexão da Arpanet, rede que deu origem à internet.
O professor Leonard Kleinrock conta que a primeira palavra transmitida entre a Ucla e o Instituto de Pesquisa de Stanford foi “lo”. A ideia era escrever login, mas houve um problema técnico no meio da transmissão.
Daí o nome “lo and behold” (expressão de surpresa em inglês que significa algo como “pare e veja”) ter sido escolhido para o documentário.
Um ponto alto do filme é a entrevista com Ted Nelson, que criou na década de 1960 do conceito de hipertexto. Seu Projeto Xanadu prevê uma aplicação muito mais sofisticada da tecnologia e nunca chegou a virar produto.
Depois de Nelson fazer um discurso sobre a água, Herzog diz que ele parece ser a “única pessoa clinicamente sã” por ali, e Nelson responde que nunca ninguém havia dito isso dele.
Presente
O diretor entrevista um casal que teve a filha morta num acidente de carro, e depois começou a receber ataques, com fotos da menina acidentada, de anônimos via internet.
Eles tentaram processar essas pessoas e impedir a divulgação das fotos, mas descobriram que, legalmente, o direito à privacidade termina com a morte.
“Sempre acreditei que a internet fosse uma manifestação do anticristo”, diz a mãe da menina.
Herzog também visita o Laboratório Nacional de Radioastronomia (NRAO, na sigla em inglês), localizado em Green Bank, na Virgínia Ocidental, numa região em que as transmissões de rádio são restritas, para facilitar pesquisas científicas e operações militares.
Na cidade sem torres de celular, Herzog encontra uma comunidade de pessoas que dizem sofrer de hipersensibilidade eletromagnética, como Chuck McGill, irmão de Saul Goodman no seriado Better Call Saul.
A hipersensibilidade eletromagnética, que faz com que as pessoas tenham de viver sem internet, não é reconhecida como diagnóstico médico nem tem base científica.
Futuro
Herzog cita uma frase do general prussiano Carl von Clausewitz – “Às vezes a guerra sonha consigo mesma” -, e pergunta a vários de seus entrevistados: “Você acha que a internet sonha consigo mesma?”
Elon Musk, fundador da Tesla e da SpaceX, confessa, depois de um silêncio inconfortável, lembrar somente de seus pesadelos. O bilionário não explica quais são seus sonhos ruins.
No documentário, Musk fala de seus planos de criar uma colônia em Marte: “Acho importante para nós tirarmos vantagem da janela enquanto ela está aberta e estabelecermos vida em outro planeta do sistema solar, caso alguma coisa dê errado com a Terra. Pode haver um desastre natural ou causado pelo homem que faça com que a tecnologia volte para um nível abaixo do necessário para viajar a outro planeta”.
Depois de Musk reclamar que está difícil encontrar candidatos para a viagem, Herzog afirma: “Eu iria, sem problema. Bilhete só de ida?” Ao que Musk responde: “Parece ótimo”. E o cineasta completa: “Sou seu candidato”.